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Vozes da Morte

  • Foto do escritor: Francyla Bousquet
    Francyla Bousquet
  • 20 de abr. de 2019
  • 3 min de leitura

Há uma música cristã que gosto bastante, que fala de amor, de plantio, de esperança, de trabalho, conceitos que acredito com minha inteireza. Essa canção tem versos que dizem assim:


“(...) Já não há lugar onde a luz não possa alcançar

Já não há um coração que não carregue o germe do amor

Já podemos divisar, ao final da estrada de luta e dor,

Os olhos calmos e serenos do Senhor (...)”

(São Chegados os Tempos - Clara Gomes)


Quando ouço esta música sou transportada imediatamente para uma rodovia vazia, num deserto, final de tarde, luz baixa, vento soprando e o barulho apenas de nossas respirações. De mãos dadas, eu e meus pais seguimos caminhando em frente, no asfalto, juntos e emocionados, com a consciência de que a árdua caminhada deles está chegando a termo. Seguro firme na mão de cada um, ajudando-os a ter energia para continuar.


Começamos a ver uma figura de um homem mais adiante, no meio da estrada – ela vai assumindo mais definição a cada passo dado. Os olhos amorosos e o sorriso terno logo são acompanhados por braços estendidos e, então, já temos certeza de que nosso Mestre, nossa inspiração, está ali, pronto para nos receber. Me aproximo com eles, mas guardo uma certa distância – não me é permitido continuar. Despeço-me dos dois com um longo abraço, cheio de lembranças e lágrimas de gratidão de ambas as partes. Cada qual ainda de mãos dadas comigo, estendo os braços indicando que eles devem continuar sozinhos a partir dali. Jesus os recebe, os abraça, os parabeniza, eles riem juntos. Eu assisto àquela cena, num misto de consolo e tristeza. Nos olhamos uma última vez e a cena se desfaz.


A morte não é uma ameaça, pois ameaças podem ou não se concretizar. A morte é uma certeza. Sendo assim, resolvi vê-la como companheira, é sob seus conselhos que auxilio meus pais a chegarem inteiros e plenos naquele ponto da estrada que sempre visualizo quando cantarolo essa música.


Eu e minha irmã continuamos separadas geograficamente por muitos quilômetros e por árduas rotinas diárias. Sempre comparo nossas rotinas, não sei bem o porquê. Mas quando penso nela, penso numa vida positiva, criando minhas duas lindezas, educando-as, promovendo, podando, regando, vendo florescer. Do lado de cá, sentia o oposto – costumava dizer que era uma rotina ‘negativa’ porque minha missão seria ajudar meus pais a terem qualidade de vida num tempo em que o corpo já mais atrapalha que ajuda, quando o passado está pintado com tintas mais fortes que o presente, quando os dias passam ásperos, quase como obstáculos ao descanso. Classifiquei como negativa essa rotina porque a missão não é encontrar cura e saúde, mas amenizar o caminho para o inevitável, para que ele não seja também insuportável.


Ainda estaria pensando dessa maneira se não tivesse compreendido que minha contribuição aqui deve ser outra.


A velhice é a fase de encerramento do projeto ‘Vida” – é tempo de avaliações, revisões, fechamento e balanço. A depender do grau de consciência que temos de nossos atos, da quantidade de amor que doamos ou economizamos durante o passar dos anos e do quão corajosos e dedicados fomos ao propósito de termos uma vida significativa, este pode ser um tempo bastante difícil. À essa altura do campeonato, nossa relação com o perdão fará a diferença entre dias mais ou menos felizes – o perdão a quem nos feriu e, especialmente, o perdão a nós mesmos: pela permissão que demos ao orgulho, que atrapalhou a tomada da decisão certa; pela autossuficiência, que nos separou dos que amamos; pelo apreço a coisas que, ao final, já não entendemos bem qual valor vimos nelas para colocá-las em primeiro plano.


Eis então o significado que vejo hoje na companhia que faço a eles, no tempo que passamos juntos: ajudá-los a se apaziguarem com seu passado, com as escolhas que fizeram e aprender com eles, a partir dessa experiência, como fazer diferente em minha vida. Quanto valor e positividade há nisso!


A separação será inevitável. Impossível me preparar para esse momento, essa angústia me acompanha. Mas entender o meu papel nesse contexto me trouxe paz e atenção para a minha própria vida e escolhas. Não é verdade que essa seja uma rotina negativa. A minha conselheira, afinal, tem nos trazido equilíbrio e harmonia para esse presente que é a vida. E esta conclusão me alenta, especialmente no momento em que descobrimos que vamos enfrentar o aparecimento de mais um câncer, juntos.


Sigamos. Paz e bem p vcs. Até semana que vem.




 
 
 

1 Comment


gasparpereirah
Apr 22, 2019

Que texto lindo minha amiga. Nesse caminho de amadurecimento, que você está traçando com a beleza de reconhecimentos significativos na composição do tempo da vida. Mesmo se deparando com momentos e expectativas tão duras, seu coração descreve com leveza os passos que somos convidados a dar mesmo sem esses desejos. Muita luz, conforto e coragem em seu caminho, onde cada dia que passa aprendo mais com suas experiências. Muito obrigada! um beijo no seu coração.

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